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Trens e estações: um caso de amor

Dr. Wilson Vilela é advogado, escritor, autor e professor

Meu avô Álvaro, pai do meu pai Aurélio, era ferroviário, maquinista de trem da Estrada de Ferro Mogiana.        

Já aposentado, morava com a minha avó Albina, e meus tios Álvaro Filho e Guiomar, na rua Doutor Ricardo em Campinas, numa casa que ficava situada defronte ao imenso pátio de propriedade da Mogiana, contíguo à antiga estação ferroviária central da cidade de Campinas, considerada pelo seu projeto arquitetônico, de linhas inglesas, inaugurada em 11 de agosto de 1872, como uma das sete maravilhas da cidade campineira, e que hoje funciona como o centro cultural denominado Estação Cultura “Prefeito Antônio da Costa Santos”.

Quando íamos visitar os meus avós, tomávamos o ônibus em Valinhos e descíamos no Mercado Municipal de Campinas (uma das outras sete maravilhas da cidade das andorinhas), situado no centro, na rua Benjamin Constant. De lá, eu segurando na mão do meu pai, seguíamos a pé, subindo pela rua Doutor Ernesto Khulmann, até chegar na rua Doutor Ricardo, na casa dos avós.

Era uma festa! Meu avô, um português alto, esbelto, de cabelos brancos, pelo menos para mim, que assim o via — como criança de sete, oito anos que eu tinha na época —, era surdo e com a mão esquerda retraída em razão de acidente de trabalho havido na ferrovia, vinha nos receber e, depois de me abraçar efusiva e calorosamente, já me colocava sentado na sua perna, e me falava de estações, de linhas, ramais, trilhos, bitolas, passagens, conferentes, colegas maquinistas, guarda-trens, inspetores, Companhia Paulista de Estradas de Ferro, Companhia Mogiana, Sorocabana, Araraquarense. Contava que entrou cedo para a Companhia Mogiana, como foguista. Depois foi estudando, trabalhando muito, chegou a maquinista, cargo que adorava. Ficou 50 anos na ferrovia, uma vida de dedicação.

Ele conhecia cada trecho da linha, qualquer que fosse a direção. Era sempre o último a entrar em greve e o primeiro a voltar ao trabalho. Amava o que fazia. Tinha orgulho de conduzir um trem, falando sempre das cidades por onde passassem os trilhos da sua amada Mogiana.

Mas, não parava por aí. Como autodidata que era, lia muito. E quem ganhava com isso era este escrevinhador. Sim, porque também me contava, com entusiasmo, estórias deslumbrantes. Foi daí que tomei conhecimento de aventuras que empolgaram a imaginação do menino e que, na época, não sabia que eram inspiradas no escritor francês, inventor do gênero literário de ficção cientifica, Júlio Verne. Viajava, com meu avô, cinco semanas em um balão, fomos até o centro da Terra, da Terra fomos à Lua, e demos volta à Lua, aprofundamo-nos no mar em vinte mil léguas submarinas, visitamos a ilha misteriosa e demos a volta ao mundo em oitenta dias.

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Depois disso, íamos passear, de mãos dadas, pelas cercanias do pátio, ingressávamos na estação, onde ele cumprimentava e era cumprimentado por muita gente, por funcionários e dizia com orgulho e satisfação: — Este é o meu neto!

Após a passagem de alguns trens, de volta para casa, já nos aguardava a sopa de minestrone, preparada pela avó Albina, italiana que era. O cheiro se espalhava pela casa toda. Uma delícia. Até hoje guardo esse sabor, inesquecível.

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Mas como tudo que é bom chega ao fim, despedíamo-nos já à noitinha e retornávamos ao mercado para tomar o ônibus. Na banca ali existente, meu pai sempre me presenteava com gibis do Fantasma, do Pato Donald. E, às vezes, antes de subirmos pela rua Ernesto Khulmann, passávamos pela livraria do João Amendola, que ficava na esquina da rua General Osório e eu ganhava livros para colorir, conjuntos de lápis de cor.

Com o tempo, eu crescendo, notei a nostalgia que se apoderava do meu querido avô Álvaro. Isso porque vieram as rodovias. Depois a estatização. Tudo virou Fepasa. Tudo virou bagunça. Os horários dos trens não eram mais respeitados. As estações foram sendo fechadas. Um país de dimensões continentais dispensou um transporte econômico, seguro e ecologicamente correto. Tudo foi virando sucata.

Às vezes acho que foi melhor meu avô ter morrido sem ver o estado em que se encontram hoje as nossas ferrovias.

Eu continuo como uma criança, com o mesmo fascínio que sempre tive pelos trens e pelas estações. Pelas músicas que falam dos trens: “Lá vai o trem com o menino…”. E como disse o Milton Nascimento, a hora da partida é também a da chegada e a plataforma dessa estação, é a vida, é a vida!

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