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A Copa, o ósculo e a copa

João Paulo Vieira é escritor

O Accor Stadium, ou Estádio Olímpico de Sidney, na cidade de Sidney, Australia, foi o cenário escolhido para que mais de 75 mil pessoas testemunhassem a final da Copa do Mundo FIFA Feminina 2023, entre Espanha 1 x 0 Inglaterra, no último dia 20 de agosto.

Com 32 seleções — 20 a mais que as 12 de 1999, ano da criação — e 736 jogadoras, foi grande em quase tudo.

Estádios lotados, receberam quase 2 milhões de torcedores e com a descentralização das transmissões, mais de 2 bilhões de expectadores acompanharam as disputas dos 64 jogos, 164 gols (recorde), sendo 18 da campeã Espanha.

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A FIFA investiu um montante superior a US$ 500 milhões, dos quais US$ 110 milhões foram destinados às premiações das jogadoras. Esse valor, superior a três vezes o total da Copa de 2019 e dez vezes ao de 2015, ainda é 35% inferior ao que foi investido na Copa do Mundo do Qatar em 2022, onde os atletas masculinos receberam US$ 440 milhões em prêmios.

Sobre os números, Gianni Infantino, declarou: “…jornada histórica pelo futebol feminino e pela igualdade… levará a um caminho para a igualdade salarial”. Ao que parecem, as palavras de Infantino soam condizentes, se olharmos para as cifras investidas. Não é muito difícil imaginar que a receita continuará a ser seguida, afinal a comemoração da instituição frente ao retorno de mais de US$ 570 milhões, segundo maior evento da história da FIFA, deixa claro que há espaço para mais.

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Juntemos aos números, a contabilidade das emoções. Os milhões; bilhões de sentimentos gerados pelos lances de cada partida, cada apito inicial, cada falta, pênaltis assinalados ou não, finais prorrogadas, gritos de gol, dentro e fora dos gramados, palavras de elogio e outras de sentido contrário.

As disputas entre a tensão e o alívio, riso e choro, alegria e decepção, num espetáculo, onde a bola se rendeu, diante dos talentos que a conduziam e a faziam bailar, fascinando a todos e todas que tiveram e têm olhos de ver a excelência daquelas mulheres em campo.

Eu gostaria de continuar a descrever a Copa do Mundo Feminina 2023, como feito até aqui; mas, há sempre o mas.

Também não estou me referindo à imensa tristeza que foi a morte do pai da jogadora Olga Carmona, responsável pelo gol da vitória e do título inédito da Espanha, o que foi terrível.

Ocorre que, em um mundo moldado sobre uma narrativa patriarcal e onde as mulheres sempre foram tratadas sob preceitos masculinos e paternalistas, seria esperar demais que não houvesse um escape inconsciente, machista, alimentado pelo motor patriarcal.

Luis Rubiales, chefe da federação de futebol da Espanha, foi responsável pela lamentável cena, na qual segurou, com as duas mãos, a cabeça da camisa 10 espanhola, Jennifer Hermoso e, sem seu consentimento, a beijou na boca.

A grave e ofensiva atitude foi tratada por Hermoso, num primeiro momento, como um fato desagradável, que a deixou sem reação: “Não gostei, mas vou fazer o quê?” Mais tarde, a jogadora teria dito, através de um pronunciamento escrito — bem estranho — que o episódio foi um “…gesto mútuo…natural de carinho e gratidão”, fruto da alegria pela conquista da Copa.

Rubiales, mostrou-se ainda pior, ao chamar os críticos de sua atitude de “idiotas”. Para completar, outras imagens mostram que Hermoso não foi sua única vítima, naquele dia.

Parece-me, por fim, que num mundo dominado pelo patriarcado, onde ainda são os homens a comandar o sistema social, político, legal e econômico, a libertação feminina de Olympe de Gouges (1748-1793 — morta na guilhotina), exposta na “Declaração dos Direitos da mulher e da cidadã” (1791), assim como “O Segundo Sexo”, 1949, de Simone de Beauvoir, marcos históricos, dentre inúmeras outras obras e ações das lutas feministas, não conseguiram, até hoje, romper as imensas barreiras impostas contra as mulheres.

O recado de Beauvoir, em seu ensaio “O Segundo Sexo”, é fundamental: “Não se nasce mulher, torna-se mulher.”

Enquanto os pensamentos de Beauvoir, Gouges e tantas e tantos outros feministas, não forem compreendidos e assumidos como indispensáveis na construção de um mundo mais empático, justo e igualitário, um ósculo será sempre capaz de levar uma Copa para a copa, onde a cadeira da ponta da mesa será exclusividade masculina, enquanto a mulher o servirá na cozinha, na cama, nos campos e nos inúmeros palcos montados.

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