Descarrilou

E naquele tão curto trajeto que liga o Bairro Alto à Praça dos Restauradores, o que era para durar apenas três minutos, ser passeio curto, fotografia alegre, chegada leve, descarrilou destinos e fez que várias vidas saíssem dos seus carris.

Foi na tarde deste último 3 de setembro, quando o Elevador da Glória — o bondinho —, um dos principais atrativos turísticos de Lisboa fez viagem definitiva.

Impossível não me lembrar das imagens que registrei de meus passeios naquele mesmo funicular, de ter me sentado à cadeira do condutor para ver melhor a íngreme ladeira em curva, suas casas e o calçamento em cada detalhe.

Enquanto eu escrevo este texto, chega a notícia de que o número de mortos na tragédia chegou a dezesseis.

A palavra que me veio à alma quando ouvi as primeiras notícias foi: desassossego. Lembrei-me de Bernardo Soares, semi-heterônimo de Fernando Pessoa e do próprio “Livro do Desassossego”: “…o gemido metálico do elétrico na outra rua; o que de misturado emerge do transversal; subidas, baixas, silêncios do variado; trovões trôpegos do transporte; alguns passos; princípios, meios, e fins de vozes — e tudo isto existe para mim, que durmo pensá-lo, como uma pedra entre erva, em qualquer modo espreitando de fora de lugar.”

Pessoa nasceu em 1888, quando o Elevador da Glória já tinha três anos de operação.

Não é difícil imaginar o ajudante de guarda-livros, Bernardo Soares, fazendo uso daquele transporte, tampouco Alberto Caeiro. Não posso afirmar que o refinado Ricardo Reis o tenha utilizado e arrisco dizer que o engenheiro Álvaro de Campos, dado seu pessimismo, não o tenha feito por receio de algum risco de acidente.

Dentre as vítimas fatais, pessoas de onze nacionalidades, além dos 21 feridos: alguns em estado grave.

Artigo de opinião: João Paulo Vieira

O Elevador da Glória atende cerca de 3 milhões de pessoas por ano, mas sua manutenção geral só é realizada a cada dois anos, tendo sido a última em setembro de 2024, conforme informou a empresa que administra aquele serviço. Aqui, já não me parece mais um acidente: soa descaso com a vida. E descaso não é acaso.

Bernardo Soares disse: “Vou num carro elétrico, e estou reparando lentamente, conforme é meu costume, em todos os pormenores das pessoas que vão adiante de mim. Para mim os pormenores são coisas, vozes, letras.”

Dezesseis “Bernardos Soares” não poderão nunca mais ver os pormenores. A vida descarrilou.

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