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Aos colonizados, nos quais me incluo

O Brasil perdeu, no último 03 de dezembro, um de seus grandes pensadores.

Foi filósofo, sem nunca tem frequentado qualquer curso da área, fato que o valida como autêntico amante da sabedoria, como conceituou Pitágoras, no século V, a. C, ao cunhar o termo “filosofia”, através da junção das palavras philo e sophia, — amor e sabedoria — quando se referiu ao pensar voltado às reflexões sobre as questões fundamentais relacionadas à vida humana, para uma melhor compreensão de nossa existência, de nossa missão.

Falo de um pensador, poeta, ensaísta, autor de “Quilombos, modos e significados”, 2007; “Colonização, Quilombos: modos e significados”, UNB, INCT, 2015, e “A terra dá, a terra quer”, Ubu, 2023, o qual só foi conhecer as letras escritas aos 9 anos, o que o fez ser o primeiro alfabetizado de sua família, após uma decisão comunitária. A tradição oral não bastava para compreender os contratos de regularização de terras, que o Estado brasileiro utilizava com sua gente, seu chão.

Em “Somos da Terra”, PISEAGRAMA, Belo Horizonte, número 12, página 44 – 51, 2018, o pensador disse: “Fui para a escola da linguagem escrita aos nove anos, mas, desde que comecei a falar, fui formado também por mestras e mestres de ofício nas atividades da nossa comunidade. Quando fui para a escola no final da década de 1960, os contratos orais estavam sendo quebrados na nossa comunidade para serem substituídos por contratos escritos impostos pela sociedade branca colonialista. Estudei até a oitava série, quando a comunidade avaliou que eu já poderia ser um tradutor.”

Nascido na comunidade do Quilombo Saco-Curtume, no Vale do Rio Berlengas, região de Francinópolis, PI, escolheu também morrer por lá, lugar que só se afastou, entre suas idas e vindas, dos 18 aos 23 anos de idade, para viver na capital fluminense, que o encantou, desde quando viu pela primeira vez uma TV e lá estavam as imagens do Rio de Janeiro.

Seus períodos no Rio de Janeiro, sempre com subempregos, o fizeram enxergar como seu povo era visto e não compreendido.

Após suas andanças pelo Rio de Janeiro, de volta ao quilombo, voltou-se à roça, como lavrador dedicado, até que sua mãe o alertou sobre sua missão em defesa de seu povo, sua cultura, suas origens e seus pensamentos: “Meu filho, você estudou para ajudar nós, não estudou só para você. Se você tá cuidando só da sua roça, então o saber que nós lhe demos está perdido. Você precisa dizer ao povo as coisas que sabe”, Nêgo Bispo, revista Revestrés.

Sim, falo de Antônio Bispo dos Santos, nome que ele próprio escolheu, ao se registrar sozinho, aos 12 anos, por acreditar que o nome de seu pai, separado de sua mãe — Pedrina Maria de Jesus — fosse Manoel Bispo dos Santos, mas este, somente aos 20 anos, registrou-se Manoel Bispo Chaves, fato que segundo Nêgo, o tornava sem pai, como disse em entrevista à Revestrés: “Deixa eu dizer uma coisa engraçada: institucionalmente, eu não tenho pai.”

Nêgo Bispo, presidiu o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Francinópolis, PI; — onde ganhou sua alcunha — atuou na FETAG – Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Piauí; ajudou a criar Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq); participou do Partido dos Trabalhadores (PT); professorou na UNB e defendeu suas ideias em inúmeros espaços.

Convicto que o movimento sindical e político partidário não enxergava as características da luta quilombola, tratando-as à parte; deixou-os, no começo da década de 90.

Nêgo Bispo, não chamava suas ideias de teorias e as traduzia como relatorias. Dizia que apenas relatava o que já estava lá, como quem desvenda o óbvio mais ululante.

Dos saberes de Nêgo Bispo, surgiu seu mais conhecido conceito: — termo que não gostava, mas se fazia necessário para explanação a nós, colonizados — A contra-colonização.

Para Bispo, a contra-colonização se diferencia do pensamento decolonial, pois refere-se aos que resistiram aos processos de colonização etnocêntrico e eurocentristas, como os quilombolas e indígenas isolados, por exemplo.

A contra-colonização é um tipo de vacina, um antidoto a combater os processos de colonização inseridos em nossa sociedade, baseados na eliminação das culturas dos povos “afro-pindorâmicos”, segundo Bispo.

Como colonizados, dificilmente, enxergamos pela visão quilombola ou indígena, pois nossos conceitos foram alicerçados sob uma perspectiva colonizadora.

O ambiente acadêmico é todo colonizado e dele deriva o pensamento sintético, voltado ao ter, de onde advém todas as políticas e tratativas que invadem a experiência orgânica e a cosmovisão afro-pindorâmica baseada no ser.

Enquanto o comportamento colonizado, baseado no ter, desintegra; a experiência orgânica da cosmovisão, no pensamento de contra-colonização, integra o ser ao todo e o desenvolve.

Paulo Freire, nos ensinou que “Não há saber mais ou saber menos: Há saberes diferentes.”

Os saberes de Antônio Bispo dos Santos são como essências, oriundas de seu viver orgânico e suas experiências culturais, transmitidas pela oralidade ancestral, traduzidas em suas escritas.

A sabedoria de Nêgo Bispo ficará, pois como ele mesmo disse, “Estarei vivo, mesmo enterrado”, afinal, gente como ele é semente.

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