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Riso banguela, esse riso de nervoso

Antes que alguém, — desavisado — infira, ao final deste artigo, que eu não gosto da capital fluminense, registro que a considero maravilhosa, mas com ressalvas.

Em meu livro “Contos em realidade aumentada”, publicado pela Giostri em 2022, três, dos oito contos que o compõem, têm o Rio, como cenário principal.

Por isso, quando ouvi, pela primeira vez, a sutil e respeitosa “crítica” de Caetano Veloso, em defesa da Baía de Guanabara, na letra de “O Estrangeiro”, faixa A1, de seu LP, quase homônimo, contra as observações daquele famoso ensaísta francês (nascido belga), de início, como ele, indignei-me também.

Cantou, Caetano: “O antropólogo Claude Lévi-Strauss detestou a Baía de Guanabara, Pareceu-lhe uma boca banguela, E eu, menos a conhecera, mais a amara? Sou cego de tanto vê-la, de tanto tê-la estrela, O que é uma coisa bela? O amor é cego…”

O antropólogo, que conhecera o Brasil entre 1935 e 1937, período que lecionou como professor visitante, na recém-criada USP, inseriu nas páginas de “Tristes Trópicos”, 1955, sua odontológica decepção sobre a estética geográfica do Rio, ao escrever: “Depois disso, sinto-me tanto mais embaraçado para falar do Rio de Janeiro, que me desagrada, a despeito da sua beleza tantas vezes celebrada. Como direi? Parece-me que a paisagem do Rio não está na escala das suas próprias dimensões. O Pão de Açúcar, o Corcovado, todos esses pontos tão louvados parecem ao viajante que penetra na baía como tocos de dentes perdidos nos quatro cantos de uma boca banguela. Quase constantemente submergidos na bruma pegajosa dos trópicos, esses acidentes geográficos não chegam a mobiliar um horizonte largo demais para se contentar com eles.”

Caetano, embora encantado pela obra de Claude Lévi-Strauss, não o poupou. Mas ainda que a canção tenha inspirado, inclusive, o título de seu álbum em 1989, em réplica, o antropólogo não gastou muitas palavras, segundo o próprio compositor de Santo Amaro da Purificação, Bahia.

Porém é óbvio que não estou aqui para reduzir o pensamento de Lévi-Strauss a um parágrafo dissonante sobre parte da topografia carioca. Fato é que o estrangeiro, criador da antropologia estruturalista, apontava um certo ceticismo em relação ao nosso futuro, frente ao distanciamento de um “Eu” eurocentrista e a busca de uma identidade modernista própria, tropical e baseada nas invariantes básicas que ele defendia, como inerentes a todos os seres humanos e que estruturam nossas relações, através de complexas interações culturais e simbologias linguísticas.

Dito isso, esta semana, li um artigo no g1, cujo título me conduziu ao mesmo olhar triste de Lévi-Strauss, sobre nosso desajuste pátrio identitário.

No excelente artigo do jornalista Pedro Bassan (RJ2 e g1 Rio – 16/01/2024), o título resume minha tristeza e talvez a de Lévi-Strauss — fosse vivo — “Histórico de enchentes do RJ tem mais de 500 anos”, em matéria que aponta para nossa total incompetência, enquanto atores de nossa nação.

A “boca banguela” descrita pelo estrangeiro francês, quase arrogante, não se limita a uma arcada dentária geográfica, malfeita, mas serve de alegoria para uma cidade, um estado, um país que continua sendo inundado por enxaguantes bucais, sem efeitos restauradores, que só fazem disfarçar o mau hálito de nossas mazelas.

E antes que alguém — distraído — diga que o Rio de Janeiro não tem jeito etc., olhe para o lado e questione o porquê nossa cidade, ano após ano, sofre com enchentes e o poder público enxagua nossas bocas com os chamados “estados de emergência”, como se nossos representantes não soubessem o que enfrentaríamos, em períodos mais chuvosos; como se não morássemos em “valinhos” e nossa topografia já não anunciasse tais ocorrências e desastres; como se nada pudesse ser feito, exceto pedir clemência aos céus, que parecem não nos ouvirem.

Quantos 500 anos se passarão, para que não tenhamos mais uma dona Norma, — regra — sentada em seu sofá, na sala alagada, olhando para seu vira-lata caramelo, a salvo na estante deserta de livros e outros direitos, como mostrou outro artigo do g1.

É possível que o antropólogo estrangeiro, hoje, risse de nós, perdidos em nossa não estruturação estruturalista.

Mas e nós, com esse riso banguela, esse riso de nervoso? Riremos também, logo mais no Carnaval, ou choraremos nosso eterno “lamento de tantos ais”, sem a paz que cantou aquele outro baiano soteropolitano?

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