Esta semana, assisti a uma reflexão — um ponto de vista — do filósofo, ensaísta e escritor, Chico Bosco, onde ele abordou a questão moderna que envolve as atuais formas de relações conjugais, em específico, o casamento monogâmico.
Na abordagem feita pelo filósofo, a modernidade, enquanto época histórica, afastou a ameaça dos fiadores “Deus” e “estiga social”, — uma espécie de superego coletivo — de suas funções de sentinelas da chamada moral e bons costumes. A modernidade impôs à humanidade, sustentar-se por si mesma, com todos os pesos e consequências que isso significa.
É claro que o comportamento humano não pode ser tratado como algo pronto, finalizado, ou perfeitamente definido e classificável. É dinâmico.
Enquanto fiéis procuram medalhinhas de Santo Antônio, em pedaços de bolo, certos de que isso lhes garantirá encontrar o amor verdadeiro e o sacramento do matrimônio, outros preocupam-se em definir, em contratos, as regras de um mero namoro.
Diante disso, então, após terminar a leitura de “A Intuição da Ilha – Os dias de José Saramago em Lanzarote, 2022, de Pilar del Río, achei que deveria compartilhar com nossos leitores, relatos da autora sobre aqueles tempos.
Começo pelas palavras de Saramago, que não fazem parte do livro:
“Tenho muitas razões para pensar, por exemplo, que o grande acontecimento da minha vida foi exatamente esse. Foi ter conhecido a ela. Imagina que eu não tivesse conhecido a ela. Você poderia dizer: “Ah, mas você teria conhecido outras mulheres”. Mas não é disso que se trata, não é uma questão quantitativa. Era simplesmente o fato de ter conhecido a ela. Nada mais. E isso mudou a minha vida completamente.
Agora você me diz: ‘Era capaz de imaginar a vida sem ela?’ E posso dizer que não sei como iria viver. Viveria, evidentemente, mas não sei como.” Do documentário “José e Pilar: Fragmentos”, 2010, de Miguel Gonçalves Mendes.
“É preciso sair da ilha para ver a ilha. Não nos vemos se não saímos de nós”, escreveu Saramago.
O universo saramaguiano é uma ilha, que avistada de fora, fica maior que sua própria geografia e sobre o mar da literatura, mais se eleva, a cada olhar.
Pilar del Río, por 18 anos e creio que para sempre, viu, como ninguém, a ilha de José e por consequência, a sua própria.
Nascida em Sevilha, na Espanha, a jornalista, escritora e tradutora, viveu ao lado de Saramago, um amor tão belo, quanto o céu de nuvens brancas, mescladas de gris, pelos cabelos de seu companheiro, fotografado à porta de A Casa, prestes a sair para o jardim da morada que se tornou mais que um lar, mas também uma extensão do escritor e de Pilar. A imagem registrada em um dos momentos vividos em Lanzarote, ilustra a capa do livro, com título e autoria destacados em alto-relevo.
Na edição da Porto Editora, que adquiri na loja da Fundação Saramago, a tradução do espanhol para o português de Portugal, feita por Sérgio Machado Letria, faz soar mais próximo o ambiente poliglótico de A Casa, sempre repleta de vida e pluralidade cultural.
A vulcânica ilha de Lanzarote, a mais oriental das Canárias, de solo ígneo, beleza rigorosa e áspera, serviu de base sólida à Pilar e Saramago. Ambos, renovados pela escolha de ali viver, se fizeram arquipélago.
Vivenciar, sob olhar tão íntimo, a vida do Nobel de Literatura, de 1998, Prêmio Camões,1995, em seus passeios pelas montanhas de Lanzarote, suas conversas com amigos, entrevistas, seus cuidados com o jardim, as torradas com pão negro e azeite, sua relação com Greta, Pepe e Camões, — extensões caninas de sua casa — seus prazeres mais simples e tão próprios, comungados e compartilhados com tanta admiração e amor por Pilar, torna a obra um lugar de convívio, de tempos já idos, mas que ainda permanecem vivos. Eternos, mas não congelados, já que guardam o calor, ora vulcânico, ora d’alma.
O Saramago de Pilar não é outro, senão ele mesmo, inteiro em cada detalhe.
Nas histórias divididas com os leitores, Pilar quase não é percebida. Seu olhar é todo para José e aquilo que orbita ao seu redor. Entretanto, ela é vista, sim, em toda sua beleza. Distanciada de si, voltada para Saramago, é possível vê-la completa, tal qual uma ilha vista de fora.
Saramago fez inúmeras dedicatórias à Pilar…
“A Intuição da Ilha” é um convite hospitaleiro que Pilar nos faz para experimentar um pouco daqueles dias de amor.
Vejam, caros leitores! Esta conversa nada tem a ver com sacramentos matrimoniais de qualquer ordem ou tipos de contratos que “os cercam”. Talvez não seja sobre modernidade, nem Iluminismo…
Saramago era ateu e não pesava, sobre ele, qualquer julgamento divino a medir sua relação com Pilar.
A Lanzarote, dada sua história e geografia, não é capaz de representar a totalidade da moral humana. Não creio que algum lugar o seja.
Portanto, caros leitores, falo de ilhas e amor, nada muito além.