

Uma vaga de operador de caixa em Nova Iguaçu (RJ), divulgada recentemente em um site popular de empregos, oferece salário a partir de R$ 1.600, refeição no local, vale-transporte e jornada 6×1. Além do atendimento ao caixa, o trabalhador pode ser requisitado para repor mercadorias, limpar e organizar o ambiente. Esse é apenas um exemplo de uma realidade replicada por todo o país no setor de supermercados.
Na contramão da alta taxa de desemprego entre jovens, empresários supermercadistas afirmam que há cerca de 35 mil vagas em aberto apenas no estado de São Paulo, conforme relataram durante um encontro realizado na capital na última semana. Segundo eles, o desinteresse da juventude estaria ligado à busca por “modernidade” e “flexibilidade”.
Como resposta, alguns empresários sugerem a ampliação do regime de trabalho intermitente, legalizado com a reforma trabalhista de 2017 e recentemente confirmado como constitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF). No entanto, pesquisadores e representantes sindicais criticam duramente essa proposta, apontando riscos de precarização e redução de direitos trabalhistas.
Custo de vida supera salário oferecido
Analisando os números, a conta não fecha. O salário líquido da vaga em Nova Iguaçu, após desconto de INSS, gira em torno de R$ 1.404. Apenas com aluguel (a partir de R$ 900 na região central), alimentação (cesta básica saudável custa cerca de R$ 432 por pessoa, segundo o Instituto Pacto Contra a Fome) e energia (entre R$ 100 e R$ 200), o valor já é ultrapassado.
Outras despesas básicas como transporte, plano de celular, internet, medicamentos, higiene e lazer ficam de fora dessa conta apertada. “As pessoas que trabalham nessas condições enfrentam o endividamento ou precisam complementar a renda, muitas vezes usando seu único dia de folga para isso”, analisa a psicóloga social do trabalho e professora da UFF, Flávia Uchôa de Oliveira.
Ela alerta ainda para o impacto da jornada 6×1 na saúde mental e física dos trabalhadores. “É muito preocupante o número dos que recorrem a ansiolíticos, antidepressivos e analgésicos para suportar a rotina”, afirma.
Contrato intermitente: solução ou armadilha?
O contrato de trabalho por hora – ou intermitente – tem vínculo formal com carteira assinada, mas não garante jornada ou salário fixos. O trabalhador é convocado conforme necessidade da empresa, com pagamento proporcional às horas trabalhadas. Férias, FGTS e 13º também são proporcionais.
Segundo a economista da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Alanna Santos de Oliveira, o modelo intermitente é uma “forma de precarização”, marcada por instabilidade e insegurança econômica. “Para alcançar um salário digno, o trabalhador precisaria de múltiplos contratos ativos, algo muito difícil na prática”, explica.
Além disso, a falta de previsibilidade compromete o planejamento financeiro e o acesso à seguridade social. “Não há garantia de atingir o valor mínimo para contribuição ao INSS, o que impacta benefícios como aposentadoria e seguro-desemprego”, alerta.
Trabalhadores querem dignidade, não “flexibilidade”
Sindicatos e centrais de trabalhadores criticam os discursos que justificam mudanças com termos como “modernização” e “empreendedorismo”. Para eles, trata-se de narrativas que mascaram a retirada de direitos e o aumento da precarização.
“A juventude trabalhadora não aguenta mais a escravidão moderna da escala 6×1 e salários de fome. Querem dignidade, estudo, tempo para a família e descanso”, afirma Márcio Ayer, presidente do Sindicato dos Comerciários do Rio de Janeiro.
A Confederação Nacional dos Trabalhadores no Comércio (CNTC) defende o fim da jornada 6×1 e a redução da carga horária semanal, sem corte de salário. “Com mais qualidade de vida, a produtividade tende a aumentar”, argumenta o presidente da CNTC, Luiz Carlos Motta.
Setor em crescimento questiona alegações de prejuízo
Apesar das alegações empresariais, os números do próprio setor supermercadista indicam crescimento acima da média da economia. Em 2023, o PIB do país cresceu 3,4%, enquanto os supermercados registraram crescimento de 6,5%.
“Não estamos falando dos pequenos mercados, mas das grandes redes, que lucram mesmo com a inflação”, ressalta Alanna Oliveira. “Dizer que não podem rever jornadas ou salários não se sustenta frente aos dados de expansão.”