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Tratar, não combater

“Damião, sem nunca ter feito outra coisa até seus 13 anos, tocava o bar entre bêbados, prostitutas e, há algum tempo, um fornecedor da erva.”
O trecho, acima, é de “Damião”, conto de abertura de meu livro “Contos em realidade aumentada”, Giostri, 2022, que muito tem a ver com a coluna de hoje.
Neste artigo, pretendo abordar alguns aspectos que compõem a questão tratada pelo STF, relacionada à descriminalização do porte de maconha por usuários, diferenciando-os dos traficantes, com a qual concordo, como ponto de avanço — ainda que tímido — no que tange, em primeiro lugar, o aspecto da saúde pública, além do racial, cultural e de classes, fundamentais à discussão do combate às drogas.
Não sou e nunca fui um fumante. Tampouco, por qualquer motivo, experimentei qualquer droga, exceto as legalizadas, como álcool, dipirona etc. Este fato, acredito, coloca-me numa posição que exclui minha suspeição, por benefício próprio e direto, a partir da decisão majoritária do STF, que descriminalizou o porte de até 40g de maconha para usuários.
Cabe-nos, penso, refletir de forma mais ampla com a sociedade civil, de maneira democrática, a questão das drogas em geral.
Já está comprovado que as políticas existentes de combate às drogas, não apenas se mostraram ineficazes, como foram capazes de promover o aumento e fortalecimento dos crimes que estão interligados e que vão muito além do tráfico em si.
Na última semana, a prefeitura de São Paulo, por exemplo, cercou os usuários de crack da chamada Cracolândia, como se tal atitude fosse resolver a trágica situação dos usuários que ali se concentram. A Cracolândia é uma das mais ilustrativas chagas urbanas na saúde e na segurança pública da capital, além do triste lado social que escancara.
A Cracolândia não teve seu início no Crack, pois em 1960, quando a droga ainda não existia, já havia apreensões de cocaína na região central da cidade de São Paulo. No caso do Crack, foi a partir dos anos 90, que seu consumo passou a vitimar os que, sem dinheiro para a cocaína, buscavam seu derivado, submetendo-se ao seu efeito devastador.


Dizem que “o que os olhos não veem, o coração não sente” e muitas vezes assistimos às tentativas de retirar da frente de nossas vistas, problemas que expõem a tragédia social que vivemos e toda desigualdade que há.
No caso da maconha, um dos grandes obstáculos para a existência de uma política adequada de solução, passa por uma construção narrativa de cunho racista e social que remonta ao ano de 1830:
“A proibição da maconha tem origem autóctone: data de 1830 uma postura da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, considerada o primeiro documento que penalizava a venda e o uso do “pito de pango”, como era conhecida a Cannabis em nosso país, cujo hábito de consumo recreativo era associado aos africados escravizados que teriam trazido essa cultura (e as sementes) de seu continente de origem… Em clara expressão de racismo estrutural, no século XIX no Rio de Janeiro punia-se com prisão, muito antes de qualquer convenção internacional, o usuário, negro escravizado ou pessoa pobre, enquanto um eventual vendedor seria punido apenas com multa.” — Luciana Boiteux, 08/2019, para o Le Monde Diplomatique Brasil.
É incontestável, desde a origem da primeira lei de “combate” à maconha, que a preocupação não estava atrelada à saúde de seus usuários, mas aos danos econômicos decorrentes de seu uso, para o sistema escravocrata do Brasil. O racismo, assim como a questão de classe, portanto, sempre foram ponto de partida, na implantação das políticas proibicionistas ao uso de drogas.
Assim como cercas e tapumes, a simples repressão policial, — em geral parcial, diante da cor e classe social dos usuários — não acaba com as drogas.
O encarceramento de usuários, na maioria negros e pobres, sobre os quais a segurança pública tente a ter mão muito mais violenta, só fez superlotar os presídios. Ou seja, a ideia de que cercar, ocultar com tapumes, ou jogar usuários negros e pobres nos presídios, na tentativa de esconder o tamanho do problema das drogas, não se sustenta mais.
A guerra às drogas, até então, sempre foi estruturalmente racista e de cunho aporofóbico. E, assim, fracassou.
A recente decisão do STF não irá solucionar o problema das drogas, mas pode ser o início para uma ampla discussão sobre o tema, que precisa contar com a participação da sociedade civil.
Precisamos mudar de “combater” para “tratar” o problema das drogas, que passa, inevitavelmente, pela discussão do racismo e da desigualdade social.

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