Um voto contra a maré

Fux expõe o cerceamento, desmonta o mérito e lembra: sem foro, sem Plenário, sobra a incompetência absoluta do Supremo, mostrando que a Corte errou de endereço.

Eis que Luiz Fux, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), resolveu virar farol em noite de neblina. No meio de um julgamento que já parecia novela mexicana, com capítulos intermináveis e com desfecho previamente marcado, ele acendeu uma vela para a Constituição e proclamou: “Não é aqui, senhores. Isso deveria descer para a primeira instância”. Pois bem, a toga falou — e falou bonito.

Não se trata de defender ideologias, porque estas mudam de cor conforme o vento. Trata-se de respeitar o direito em si, a justiça pura, aquela que não veste partido. O voto de Fux foi, para mim, como professor de direito constitucional, uma aula magna em horário nobre: clara, precisa, capaz até de fazer calar o burburinho de redes sociais.

Disse ele que Bolsonaro e os demais réus não têm mais foro privilegiado porque já não ocupam cargo algum. Logo, o Supremo não teria competência para julgar o processo. E mais: se, por acaso, a Corte insistisse em julgar, que fosse no Plenário, como manda a Constituição, e não em turminha de quatro ou cinco. Ironia pouca é bobagem: não fosse trágico, seria engraçado ver a mais alta Corte de Justiça do país discutindo se a Constituição é clara ou apenas sugestiva.

E não parou por aí. Fux também acolheu a tese de cerceamento de defesa: afinal, despejar sobre os advogados toneladas de dados sem prazo razoável para analisá-los é como dar a um cozinheiro um banquete inteiro e pedir jantar pronto em dez minutos. Contraditório e ampla defesa, disse ele, não são luxos, mas direitos fundamentais.

E quando chegou ao mérito, o ministro ainda lembrou que os fatos descritos não se enquadram na Lei das Organizações Criminosas. Não havia, segundo sua análise, uma associação permanente e estruturada, com divisão clara de tarefas e objetivos ilícitos. Ou seja, chamar aquilo de “organização criminosa” seria como chamar um jogo de futebol de campeonato só porque quatro amigos chutaram bola no campinho.

Mas o fato é que, até aqui, a Primeira Turma não parece tão dividida assim. Alexandre de Moraes e Flávio Dino já votaram pela condenação, formando a maioria provisória de 2×1. Restam ainda os votos de Carmen Lúcia e Cristiano Zanin, que podem consolidar ou não esse resultado. No meio desse cenário, Fux, com seu voto divergente, brilha sozinho: um maestro afinado, mas sem orquestra para acompanhá-lo.

Mas aqui entra a ironia jurídica: um voto só não resolve o problema. Para levar o caso ao plenário, são necessários dois votos. Dois! Ou seja, a defesa de Bolsonaro segue de binóculo, torcendo por companhia. Um voto é carnaval com apenas um passista: dá para aplaudir, mas não há desfile.

Confesso: foi refrescante ouvir a voz de Fux. Depois de tanto tempo em que a Corte parecia flertar mais com a política do que com a Constituição, ver um ministro resgatar o bom senso devolveu-me a fé na advocacia. Ainda que, juridicamente, o voto seja insuficiente para mudar o resultado, simbolicamente foi gigantesco.

Eis o paradoxo: o voto que lavou a alma da defesa precisa de companhia para virar realidade. Enquanto isso, resta a mim, advogado e professor, o consolo de que ao menos ainda existem juízes que honram a toga. O espetáculo não terminou — está apenas no ensaio. Mas que belo ensaio foi esse.

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