“Libertei mil escravos. Poderia ter libertado outros mil se eles soubessem que eram escravos.”
A citação, acima, que circula desde a década de 90, não pertence à abolicionista Harriet Tubman, segundo a biógrafa Kate Clifford Larson, autora de “Bound for the Promised Land: Portrait of an American Hero”, 2003, que não encontrou nenhuma base histórica que a ligasse ao dito.
De acordo com os fatos históricos, Harriet Tubman contribuiu de maneira decisiva para a fuga de 70 escravizados, que com base em suas informações fugiram por conta própria.
Embora a frase não possa ser, sob o aspecto histórico, atribuída à Tubman, em nada desmerece sua imensa contribuição à causa abolicionista, que a tornou símbolo dessa luta nos EUA.
Há estudiosos que apontam um paradoxo na frase, pois seria impossível que as pessoas escravizadas não se percebessem escravos. Porém, não se libertavam, porque “existiam forças poderosas organizadas contra elas.”, como disse Caleb McDaniel — historiador — em artigo para o site “Africa Check”, 2019. McDaniel explica que a citação é um insulto à inteligência e dignidade das vítimas humanas da escravatura.
Não obstante ao pensamento de McDaniel, o qual compartilho, derivo dele um ou outro: Como podemos, enquanto colonizados no passado, não os sermos, hoje?
Para ilustrar tal questão, quero pôr em pauta a recente discussão entre o bilionário Elon Musk, dono do “X” e o ministro Alexandre de Moraes — reforçado pelo STF, conforme declaração de seu presidente Luís Roberto Barroso.
A chamada Era da Informação, — iniciada em meados do séc. XX — define-se pelo avanço das tecnologias de informação como base econômica. Disso, depreende-se que a informação é aquilo que há de mais valioso no mundo e quem a coletar, armazenar e analisar em maior grau, terá maior poder. Diversos cientistas políticos concordam que “… o capitalismo e o comunismo, as democracias e as ditaduras são essencialmente mecanismos que competem em recolher, reunir e analisar informação. Ditaduras empregam métodos de processamento centralizado, … democracias preferem o processamento distribuído.”, Harari, Homo Deus, 2015.
Naquilo que se refere à coleta de dados, todos estamos sujeitos às big techs e parece que não há como escaparmos deste fato. Resta-nos, então, correr muito em busca de regulá-las, como forma de preservarmos algum direito.
Não se engane. Elon Musk é um dos pouquíssimos humanos que sabe mais sobre você, do que você mesmo.
O ponto é que Musk não quer ser controlado por ninguém e busca apenas ampliar seus estoques de informação, fonte maior de seu poder econômico. Para tal, quanto menos leis a impedi-lo, melhor.
Lembram-se do conceito, onde a ciência política aponta que recolher, reunir e analisar informação, com processamento centralizado é um método das ditaduras?
Enquanto Musk usa do discurso da liberdade de expressão, para distorcer informações, permitir a disseminação de mentiras, incentivar diversas formas de violência e fomentar a polarização — ferramenta de engajamento — falseia a ideia de que você é livre, ao tempo que mais o escraviza e mais avança contra a democracia.
Nossas leis e sistemas de organização política progridem muito lentamente e de maneira reativa, comparados aos avanços da TI. Musk se aproveita disso.
Na busca de regulamentar o comportamento mercadológico de atuação das big techs, passou a viger na União Europeia a Lei de Mercados Digitais, que pretende dar mais poder de escolha aos usuários. Aqui no Brasil, o Marco Civil da Internet, Lei n° 12 965, de 23 de abril 2014 e a LGPD, Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018, foram conquistas importantes, mas diante de posicionamentos antidemocráticos como o do bilionário, não blindam nossa democracia. Enquanto isso, a “PL das Fake News” serve de almofada de assento na Câmara dos Deputados e corre altíssimo risco de ser sepultada, de acordo com o desejo de seu presidente, Arthur Lira.
É possível que você não concorde com o ministro Alexandre de Moraes, nesta ou noutra decisão, mas seu posicionamento firme, contra o evidente ataque pessoal que sofreu e a ameaça de descumprimento legal das medidas contra a disseminação de mentiras e o uso político da rede “X”, hostilizando nossa democracia, com intuito de implementação de um modelo de ultradireita e ditatorial, faz do STF a principal defesa de nossa soberania e salvaguarda democrática.
Cabe-nos, sim, uma ampla discussão em torno das questões que envolvem o controle sobre a atuação das big techs, em especial, àquelas que resistam às leis.
Precisamos aceitar que, no momento, estamos todos escravizados e reféns da cessão de informações valiosas para colonizadores digitais, que nos controlam com seus grilhões algorítmicos e almejam, nos poderes políticos, representantes de suas aspirações absolutistas.
Quem de nós, neste cenário, pode se dizer livre e quem se vê escravizado ou colonizado digitalmente?
Somos inteligentes o bastante para nos vermos como escravos, que não conseguem lutar contra poderosas forças organizadas, como disse Caleb McDaniel, ou a frase, erroneamente referida à Harriet Tubman, se mostra mais verdadeira?
Qual o “X” da questão, caro leitor?