News

Um Grito Contra a Arrebentação

Certa vez, alguém me disse que quando escrevo coisas relacionadas ao mar, meu “Eu” se apresenta mais inteiro. Não é à toa, isso.

A primeira vez que vi o mar, eu tinha uns quatro anos de idade. Ainda sem saber o que era, lembro-me da viagem feita até Santos, SP.

Naquela época, por volta de 1971, não tínhamos um carro e foi graças a um amigo de meu pai — um português de nome Joaquim — que chegamos ao litoral, onde ficamos no apartamento de um tio.

Recordo-me, — em lampejos — do Fusca azul, minha irmã e eu dentro do pequeno maleiro interno, da vista serrana, das expressões felizes, dos pés na areia e de um tanto de água que não cabia em meus olhos. Uma imensidão verde azulada que nunca mais me deixou. Não há fotos daquela viagem, exceto as que registrei através de minhas retinas.

Anos mais tarde, minha esposa e eu mostramos o mar das praias do Guarujá, SP, à nossa filha. Era 1994, ela tinha cinco anos e com uma Canon, Prima Quick, 32mm, analógica, eternizei o instante em que ela saltava as ondas, com seus braços abertos para Atlântico. O mar, até hoje, é o lugar onde ela se reconecta, apazigua a mente, acalma o coração.

Em dezembro passado, foi a vez de meu neto, com seus dois anos, sentir o mar pela primeira, levado por minha filha. Nas imagens que ela fez, meus olhos viram — talvez projetados — a postura contemplativa que ele me pareceu ter. A areia, os primeiros passos sobre o recuo das ondas e aquele “tantão” — expressão dele, para tudo que é grande — de céu e mar.

Habitamos a Terra, que abriga todos os mares, todas as praias, origem da vida. Somos intimamente conectados aos oceanos.

Nosso país, de extensão continental, com quase 7.500 quilômetros de litoral, sob vários aspectos, formou-se a partir de nossas praias e grande parte daquilo que nos faz brasileiros tem um marcante tempero marinho.

Quando penso sobre a real ameaça que a Proposta de Emenda à Constituição n° 3, de 2022, — PEC das Praias — representa à nossa história, nosso jeito de ser e, principalmente, ao nosso direito democrático e constitucional ao “pé na areia”, mar, peteca, frescobol, futevôlei, surf, futebol, a caminhada despretensiosa, uma corrida leve ou intensa, sem falar nas cores, classes, crenças, corpos tostados à milanesa, cerveja salgada pelos lábios, prosa amaciada pela caipirinha, sede saciada pelo mate gelado… entristeço.

A simples ideia de ver nossas praias privatizadas — sim, o termo é esse — me dá náuseas e não pelo balanço das naus, mas pela cretinice de quem a defende.

Não consigo conceber que alguém crescido na baixada santista, futebolista, que certamente, ainda muito menino, bateu bola em São Vicente, que sabe, ou deveria saber o valor que isso tem para o lazer de nosso povo, já tão privado de tudo, é capaz de anunciar um projeto bilionário e oportunista, que ameaça tirar da massa de nossa população, uma das pouquíssimas possibilidades de diversão gratuita que ainda existe, pois é o que o futuro reservará, caso não seja sepultada a proposta da Pec da Praias.

Qualquer discurso favorável à PEC n° 3, de 2022, no mínimo, é displicente com as questões ambientais, tem objetivo pecuniário, elitista e carrega inúmeros preconceitos.

Não temos mais aquele ministro que odiava os pobres, que criticava o fato de ter “empregada doméstica na Disney”, mas basta ver quem é o relator da PEC, para compreender que ela carrega, nas entrelinhas, a mesma essência abjeta.

Que povo triste seremos se, por falha nossa, a PEC das Praias vingar.

Nossa música nunca mais será a mesma, sem o “velho calção de banho”, porque o traje não estará adequado… sem Mucuripe para deixar as magoas, porque a “calça nova de riscado e o paletó de linho branco”, sem grife, barraram o “sorriso, ingênuo e franco…”

Talvez o mar de Caymmi não quebre mais “bonito”, afinal a Rosinha de Chica, sem dinheiro para a consumação, não poderá entrar na praia e chorar por Pedro, que jaz.

A Bossa Nova será uma lembrança melancólica de um barquinho furado, trocado por jet-skis.

A PEC das Praias, se passar, privatizará nossa ginga, nossa MPB, nossa prosa, poesia, pintura, toda arte e brasilidade, até então retratada.

Mas temos Luana, que soube se pôr contra essa “onda” e da democrática praia, lançou um foguete de socorro. Um grito contra a arrebentação.

Não a deixemos só, sob risco de ver nossos direitos morrerem na praia.

Leia anterior

Casa abandonada espanta moradores com estado de negligência e falta de manutenção

Leia a seguir

Jogo beneficente no Campo do Pinheirão foi um sucesso com arrecadação de alimentos