“Quando despersonalizamos o rio, a montanha, quando tiramos deles os seus sentidos, considerando que isso é atributo exclusivo dos humanos, nós liberamos esses lugares para que se tornem resíduos da atividade industrial e extrativista. Do nosso divórcio das integrações e interações com a nossa mãe, a Terra, resulta que ela está nos deixando órfãos…”, Ailton Krenak, — Ideias para adiar o fim do mundo — 2020.
Antes de avançar neste artigo, caro leitor, considero bastante importante a releitura do parágrafo anterior. — Sem pressa.
Que bom que você o releu!
Para dizer a verdade, é provável que o primeiro parágrafo já baste para a mais profunda reflexão voltada à exata compreensão da catástrofe que se abate sobre o Rio Grande do Sul e seu povo; que também é do norte, do leste e do oeste. Da Terra, enfim. Mas talvez devamos conversar um pouco mais.
Não há dor humana que seja solitária. Não existe uma dor sequer, humana ou não, que seja individual.
Entretanto, leitor, nem todos parecem capazes de sentir a dor do outro, a dor da Terra e de todos os seus filhos.
Esta semana ouvi, dezenas de vezes, que o Rio Grande do Sul enfrenta uma situação de “guerra”, no “combate” às enchentes…
Guerra… combate… Falamos da Terra, nossa mãe, como uma espécie de inimiga, que temos que combater. — Homens, vamos acabar com ela!
Quando não a subtraímos de suas riquezas, numa relação de extração desenfreada, exigimos que ela produza para além de suas forças e negamos o seu direito de reclamar, de dizer que está em exausta, que padece de uma crise climática.
Até a Revolução Industrial, por volta de 1760, éramos 760 milhões de seres humanos e nosso planeta possuía um estoque natural, acumulado durante 4,54 bilhões de anos, que estava praticamente intocado.
Em apenas 264 anos, somamos 8 bilhões de pessoas, a consumir atualmente quase dois planetas por ano em recursos naturais, sejam renováveis ou não, e ainda assim mantemos quase 30% da população mundial sob alguma forma de insegurança alimentar.
Inventamos um sistema especializado na desigualdade econômica e insistimos no seu “aperfeiçoamento” e manutenção.
Quando imagino que desastres como este possam nos despertar um sentimento solidário universal, deparo com atitudes estúpidas, cruéis e oportunistas de toda ordem.
Esta semana, li um premiado escritor, jornalista e mestre em literatura, que em sua rede social disse que o sentimento separatista, que eclodiu na Guerra dos Farrapos, continua presente porque se trata de um movimento de reação ao desprezo do Brasil para com o Rio Grande de Sul. Pobre pessoa, ele, capaz de um pensamento tão reduzido e de uma fala tão cáustica, em um momento que “o Brasil” — como ele o separa — está todo voltado e empenhado em socorrer o povo gaúcho.
Como esperar que consigamos nos integrar e interagir com a Terra, se não conseguimos nem ao menos deixar de lado ideias absurdas como as que acabei de citar?
Enquanto 414 cidades gaúchas estão em situação de calamidade, onde mais de 1,3 milhão de afetados pelas águas buscam sobreviver, testemunhamos tentativas de impedir a chegada de auxílio, através de mentiras espalhadas, barrando alimentos, roupas, água etc. às vítimas.
Vi ações mentirosas que impactaram negativamente a arrecadação de valores destinados à compra de equipamentos para purificação da água das enchentes, capazes de torná-la própria ao consumo humano.
Vi um “grande” jornalista desinformar o público, ao publicar que a primeira-dama do país teria ido ao show da Madonna, quando na verdade ela se voltava a visitar o RS, após dispensar o convite recebido da cantora.
A cega ideologia de alguns, incapaz de ver, não sente e não cede à dor alheia, dos que perderam tudo.
Também vi a imagem de um cavalo, parado sobre o pequeno espaço de um telhado, onde os arredores tinham todas as construções quase totalmente submersas.
Um cavalo não espera ajuda. Se não for resgatado, provavelmente morrerá. Mas ele não aguarda ser salvo. Não conhece o que é esperança. Enquanto tiver forças, ficará ali. Se a água baixar, talvez consiga descer e com sorte sobreviver.
A esperança é uma virtude exclusiva de nossa espécie. Um cavalo não a possui.
A Terra não espera nada de nós, ou talvez espere nosso fim, para que possa se regenerar. Ela tem um tempo de bilhões de anos à frente e pode aguardar. Já não dá para dizer o mesmo de nós.
Krenak diz que ao longo de nossa evolução construímos um cenário imaginário da Terra, para alimentar nossos desejos. A vemos como “uma mãe farta, próspera, amorosa, carinhosa… Um dia ela se move e tira o peito da nossa boca. Aí, a gente dá uma babada, olha em volta, reclama porque não está vendo o seio da mãe… e a gente começa a estremecer… o mundo está acabando…”
Ailton Krenak é otimista — se posso assim dizer — e acredita que a mãe Terra voltará a nos amamentar, desde que experimentada, por nós, a sua falta, passemos a sugar menos o seu seio e não lhe arranquemos o bico.
Sinceramente, não sei se conseguiremos.
Às vezes, sinto-me como aquele cavalo.