Por conta de uma reforma, há poucos dias, eu conversava com o pedreiro encarregado da obra, que me falava sobre a sua vontade de se tornar engenheiro civil. Jovem, mas com 20 anos de profissão herdada do pai, falou-me disso com a mesma confiança que assenta o revestimento da parede à perfeição.
Na infância, minha casa não passava um ano sem alguma reforma ou ampliação. O projeto de moradia básica da Cohab Campinas, entregava os imóveis com o mínimo necessário à habitação, o que fazia da vila um constante canteiro de pequenas e irregulares obras, a partir das ações de melhorias que os moradores empreendiam, em busca de mais dignidade.
Meu avô paterno, além de lavrador, fora pedreiro. Meu pai, ainda menino, trabalhou como servente de obras. Assim, aprendi o valor dessa profissão, quase sempre menosprezada.
Dos tantos pedreiros que ajudaram a dar forma às intervenções arquitetônicas da casa de meu pai, ora por desejo dele, ora de minha mãe, um não me sai da lembrança.
Não dava para deixar o Volks da família ao relento. Portando, era fundamental uma garagem bem-feita, coberta por laje. Ela deveria ser capaz de proteger o veículo da chuva, — principalmente granizo — do sol e qualquer outro tipo de intempérie.
O pedreiro encarregado pela execução da empreita era um tal de “Bofó”, — alcunha que não me recordo o significado — que fora indicado por um amigo de meu pai.
Bofó não era mau pedreiro. Sabia bem o que precisava ser feito e como fazer, mas seu dom era outro.
Se bem me lembro, a obra que levaria uns 20 dias, estendeu-se por uns 90, — posso estar exagerando um pouco.
O “problema” é que o Bofó gostava de uma boa conversa e não lhe faltavam histórias para contar.
Numa delas, disse que era músico e havia sido integrante dos “Originais do Samba”, — aquele, do Mussun —onde tocava cavaquinho.
Seus ajudantes não o desmentiam e como não havia Internet naquela época, restava acreditar.
Não precisou nem de uma semana de serviço na obra, para que o Bofó aparecesse com seu cavaquinho azul envernizado e bem afinado para uma demonstração de seu verdadeiro talento. Os dedos ásperos e castigados pelo ofício cimentício, não interferiam na leveza de seu dedilhado. Ao som do cavaco, somado ao pandeiro e violão, — acrescentados pela vizinhança — o cronograma da reforma seguia atrasado no compasso.
Enquanto a colher de pedreiro descansava na lata d´água; petiscos, cerveja e aguardente — ponto fraco do Bofó — reforçavam o repertório do sambista.
Com o tempo, a garagem ficou pronta, o fusca estava protegido e Bofó seguiu com sua turnê para outra obra.
Às vezes, a vida se impõe e vai definindo nossos caminhos e profissões. Escolher o que seremos é raro e não depende apenas do desejo, mas das condições que temos.
Li, por esses dias, um trecho da reportagem que José Saramago deu ao escritor brasileiro Humberto Werneck, para a revista Playboy do Brasil, 1998, que também era conhecida por suas excelentes reportagens.
Saramago gostou tanto da entrevista, que no “Último Caderno de Lanzarote” a reproduziu na integra.
Ali, o autor e futuro Nobel de Literatura, falou de sua jornada até ser reconhecido como escritor.
Embora o primeiro livro de José Saramago tenha sido escrito aos 25 anos de idade — Terra do Pecado — foi aos 58, a partir de “Levantado do Chão”,1980, que seu estilo narrativo se firmou e sua literatura ganhou força, para nunca mais deixar de tê-la.
Saramago foi serralheiro e mecânico de motores de automóveis, entre os 17 e 18 anos, após completar parte dos estudos numa escola industrial. Também trabalhou na indústria metalúrgica, foi tradutor, crítico literário e responsável pela produção de uma editora.
Com o tempo, Saramago foi trabalhar para um jornal que pertencia ao Estado e lá ficou até 1975, quando toda redação e administração foi demitida, — perdendo o cargo de diretor-adjunto do “Diário de Notícias” — após o fim da ditadura salazarista, pós “Revolução dos Cravos”, 1974.
Saramago decidiu, assim, não procurar um novo trabalho e passou a se dedicar exclusivamente à escrita literária.
Aos 76 anos, Saramago disse a Humberto Werneck, em sua entrevista: “Que sorte eu tive, de tudo o que tinha a fazer de mais importante estar a fazê-lo nesta fase da minha vida. Porque se tivesse feito aos 50 anos, provavelmente agora não tinha mais nada para dizer.”
Saramago desmonta o etarismo e nos dá uma chacoalhada, dizendo que não há idade para quem se propõem a ir além do que já foi.
É provável que Bofó tenha vivido sua grande chance, quando sambista, mas isso não lhe rendeu o futuro de músico. De alguma forma ele sucumbiu ao tempo, às durezas da vida — que há para todos — e não fez de sua arte o seu viver.
Publiquei meu primeiro livro aos 54 anos idade, já aposentado, após mais de 37, como bancário. Uma obra de ficção que guarda pouca ou quase nenhuma relação com a minha vida profissional anterior.
Hoje, preparo um romance e escrevo para este semanário.
Para Saramago, são as circunstâncias que nos obrigam a decidir sobre o que faremos com os dias que ainda nos restam e não sabemos até onde irão. Uma espécie de quebra-cabeça, sem gabarito e cujas peças encaixamos a cada instante.
Olho para trás e vejo que nunca tive todas as peças do quebra-cabeça de minha vida. Elas surgem aos poucos e as vou encaixando como entendo ser o mais certo.
Se o pedreiro que me disse querer ser engenheiro, irá sê-lo, não sei. Cabe a ele ver que peças possui para montar seu próprio quebra-cabeça, até que um dia não tenha mais nenhuma peça à mão, nem tempo para encaixar.